About the Book
Véu sem voz começa e termina numa noite; talvez a mesma, assumindo, como no texto, noite como silêncio: silêncio como a possibilidade - apenas - de tudo, posto que, em si, só pode ser nada. Cada palavra irrompe do silêncio e para lá, deslida, retorna. Cada vida brota uma manhã até que se põe, baldia, ao pé de uma chuva alheia. Vida não se leva, embora o texto talvez fique até mais tarde. É isto, o que está em "Ninguém pergunta pra noite", por exemplo, poema de abertura do livro, em que se argumenta a palavra como uma "invenção" que emula um "sopro/ através da corda". A corda, naturalmente, retorna à pausa após o movimento, e mesmo que se imagine que um sopro possa gerar algum tipo de erosão no seu corpo, o silêncio da corda, antes e depois da vibração, é o mesmo. O texto, por outro lado, fica, mas como vestígio entre as noites, como a poesia que se arranja - musicalmente - a partir de um alfabeto que permanece mudo, para usar outra imagem do texto em questão; ou, ainda, como a "caligrafia de luzes" que a noite possibilita e que imprime traço inevitavelmente a se apagar da retina. Na outra ponta do livro, "O poema" reforça este pensamento, com a imagem do "silêncio/ que rodeia a lâmpada", como uma incômoda e permanente ameaça de desaparecimento, de escuro, do nada. Uma leitura possível admite a ideia de algo-alguém (poema-amante) que vem "através do silêncio" para um encontro ao mesmo tempo desejado e recusado, como observamos por meio dos versos: "pareço satisfeita agora que refeita em desviar do teu/ percurso"; ou de "eu desço pra trás e te chamo novamente/ daí de dentro de mim"; ou, finalmente, de "mas juntos dançaremos até o amanhecer". Se analisarmos o texto a partir da argumentação que viemos desenvolvendo, temos, em ambos os casos (tanto assumindo o interlocutor como um amante; quanto como um poema), um eu-lírico contrariado, obrigado a sujeitar-se a este interlocutor como única forma possível de escapar do desaparecimento: sobrevivemos ou na memória do outro - mas apenas como esse outro nos vê -; ou no texto que produzimos, que também dependerá da leitura de outrem para que se engendre uma ideia sempre incompleta de autoria. Sob qualquer perspectiva, há apenas o desespero pela falta de controle sobre o que somos ou sobre o que deixamos entre esses dois silêncios, o mesmo silêncio. A tentativa de fixação de um Sujeito acompanha toda a história da poesia, e já teve algumas fases: a épica, em que o poema serviu de suporte para o estabelecimento de uma memória coletiva e, portanto, para a formação de um mito de nação ou povo (como o do grego através de Homero); a lírica, em que a poesia teceu o mito de um sujeito linear, formado a partir do aprendizado da infância à vida adulta, sendo o poeta, neste ofício, o ápice do acúmulo cultural e da genialidade (como a de Wordsworth); e a pós-lírica, em que o Sujeito passa a ser não o que viveu, não sua biografia, mas sua bibliografia afetiva: somos o que lemos, inventamos tradições a que nos afiliamos (como os Cantos de Pound). O que vemos em boa parte da poesia contemporânea, entretanto; e o que certamente vemos em Susy Freitas, é o fracasso de todos esses projetos, pois há sempre, como vimos, a percepção de que o que se quer fixar no poema é algo irrecuperável: "esse vazio pesa/ vazio de ser tudo de dentro do muro/ quando pulo/ parece um tiro no escuro" ("Abrigo"). O sujeito, portanto, não tenta construir sua identidade a partir do passado - vivido ou lido -, apenas assume sua efemeridade como força poética: larga a mão do controle. Ainda que contrariado.