Reza a lenda que, com o passar do tempo, nossas lembranças se tornam esmaecidas, e de tudo o que passou, nos lembramos apenas do que nos fez mais felizes, ou do que mais dói. No meu caso, não lembro quais tortuosos caminhos virtuais me fizeram chegar até O Batom de Clarice, mas lembro bem de quando cheguei lá, porque doeu. Doeu reconhecer nas palavras de outra pessoa uma angústia que eu achava ser só minha, e foi a partir dali que me encontrei em Juliana, e fui [e tenho sido] feliz. Mestre Vinicius cantava que essa nossa vida é a arte do encontro, e apesar dos tamanhos e tristonhos desencontros que teimam em atravancar meu caminho, ter encontrado Ju e suas palavras são como aquele quindim recheado de carinho e deixado, silenciosamente, na portaria. Sei que estou cá para falar desse livro lindo, o primeiro rebento dos muitos que, espero, estejam por vir. Mas não consigo falar da criatura sem falar da criadora. Não consigo desvencilhar a obra da autora, e eu sei, é um pecado meu, mas um pecado de quem não sabe separar o amor pela amiga querida da admiração por suas palavras. Os poemas de Perdoe-me tanto laquê são, assim como as mãos que os escrevem, polifônicos. Cheios de vozes de tantas mulheres que residem em apenas uma: virgens, santas e putas, como aquelas que arrumam sua cama em "quase ana c". São tantas e tão diferentes mulheres que cabem nessas páginas, que é como se Juliana tivesse feito horcruxes de si mesma e as espalhado em cada verso, em cada estrofe, em cada página em branco. E esses retalhos se encontram com as querências, as dúvidas, os prazeres, as angústias e as tristezas das tantas outras almas que estão buscando a si mesmas. Certa hora ela diz "É na pequenez que me vale, que me cerca, que me importa, que me faço." Como aceitar que uma iraquiana - ainda que por acaso do destino -, mineira e brasileira se faça na pequenez? É que a pequenez de Juliana é a da delicadeza, da simplicidade que reside nas coisas tão grandes que, por não caberem em si, reverberam ao seu redor. A poesia desse livro não está em estado de dicionário. É necessário que você traga a chave drummondiana que possa abrir as portas e janelas das palavras que, aqui adormecidas, esperam para brincar em olhos outros. Os poemas que aqui estão esperam, inquietos, para passear em sua vida, e reverberar em sua história. Assim como Clarice, Juliana trata as palavras com o carinho de quem vê nelas a salvação para o desespero dos dias. Como se suas palavras fossem a mão de deus guardando com amor seus sonhos. O insano Quincas Borba, retalho do nosso querido Bruxo do Cosme Velho, disse certa feita que "o maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado". Eis que você tem em mãos a publicação do maior pecado de Juliana Gervason: querer carregar água na peneira, assim como Manoel de Barros e tantos outros que ousaram sair do lugar-comum e voar fora de suas próprias asas. "O mesmo triste do ato da escrita É o silêncio dos que nunca aplaudem" Eu sinto ter que desapontar seu poema, Ju, pois estou aqui, aplaudindo de pé, e tenho certeza de que aqueles que se aventurarem a andar descalços e desnudos por suas idiossincrasias também o farão. E, com a benção e a licença poética de outro querido mestre, o Quintana, preciso dizer a todos os que seguirão esse caminho que, os outros passarão, mas Juliana, passarinho. Que seja doce, como o queria Caio F., esse nosso caminho.